terça-feira, março 25, 2008

Aqui

Contra a parede, mãos atadas, nenhum horizonte a frente, nenhum som que eu reconheço.
Infinitamente só, completamente contida, com um sorriso cínico e falso, sigo.
A falta que traz o sono, o pesadelo, o sol que nasce, trazendo mais um dia igual.
Sinto um arrepio ao lembrar, banhos de chuva lavando a alma de qualquer mágoa passada, qualquer noite sem graça sendo lembrada e repetida diariamente.
O fogo que se apaga trazendo o frio, o frio que não sinto na pele, o frio que não sinto no ar, sinto em cada toque do telefone, em cada não, em cada lágrima derramada em vão, ao soar da campainha, a cada login, a cada conversa.
Em cada abraço um espaço imenso, em cada beijo o fingimento descarado do não sentir, do não querer.
Aqui, onde o maior castigo é o pedido concedido, o sonho realizado, a volta; aqui e só.

sábado, março 08, 2008

Se Tu Me Esqueces

Quero que saibas uma coisa.
Tu já sabes o que é:
Se olho a lua de cristal, o ramo rubro do lento outono
em minha janela,
se toco junto ao fogo a implacável cinza ou
o enrugado corpo da madeira, tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz , metais,
fossem pequenos barcos
que navegam para estas tuas ilhas
que me aguardam.
Pois, ora, se pouco a pouco
deixas de me amar, de te amar, pouco a pouco, deixarei.
Se de repente me esqueces, não me procures,
já te esqueci também.
Se consideras longe e louco
o vento de bandeiras que canta minha vida
e te decides a me deixar na margem do coração
no qual tenho raízes, pensa que nesse dia
a essa hora levantarei os braços
me nascerão raízes procurando outra terra.
Porém, se cada dia,
cada hora, sentes que a mim estás destinada com doçura implacável,
se cada dia se ergue uma flor
a teus lábios me buscando,
ai, amor meu, ai minha,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga
nem se esquece, do teu amor, amada,
o meu se nutre, e enquanto vivas estará em teus braços
e sem sair.
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Pablo Neruda
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(E por si só, a verdade se revela, a realidade se apodera de nós e assim, tudo se encaixa.)

sexta-feira, março 07, 2008

Real

Eu quero ir pra onde o medo de errar não exista.
Eu quero ir pra onde a saudade seja uma longa gargalhada.
Eu quero ir pra onde a dor não me alcance.
Onde o cansaço acabe com um beijo.
Onde o dinheiro não seja contado.
Onde a razão seja uma criança com uma bola vermelha.
Onde a verdade seja feliz.
Onde todos se amam pelo simples fato de compartilharem o mesmo nascer do sol.
Onde a existência tenha sentido.
Onde o perdão é consentido.
Onde a tristeza é o maior pecado.
Onde tudo é partilhado.
Onde o 'superego' é o estranho e você a criança ("nunca converse com estranhos").
Onde o sorriso é a maior recompensa.
Onde o amor é o oxigênio e a paz o alimento.
Lá não existe o frio, só o aconchego.
Lá não existe calor, só liberdade.
Lá nossos pés estão descalços.
Lá o arrependimento não foi inventado.
Lá as nuvens formam as notícias do dia.
Lá os pássaros cantam.
Lá não há 'barulho'.
Lá a paixão se espalha, acolhe, faz os olhos brilharem, as mãos se tocarem, os corpos se encontrarem.
Estive lá essa noite, mas voltei ao amanhecer.

quinta-feira, março 06, 2008

Metade


A chama da vela ilumina metade da cama. Uma imagem, a lembrança de uma escada e de um celular. Um som que eu não posso esquecer, o ranger dos degraus; risos abafados, quase uma fuga, mãos dadas e um único destino: um quarto escuro e a leve sensação de proteção. Num momento onde eu fiz do passado uma promessa, um relicário dessa paixão quase esquecida, morta, me alimentando. O cheiro de cravo pelo quarto e a sensação do seu cabelo molhado tocando a minha pele quente. Menta americana, o gosto, num contato infantil, no colo vazio, nas entrelinhas o retrato dessa saudade em preto e branco. Mentiras, traições momentâneas e a falta... Tantos lugares, o espaço ocupado por rostos estranhos, um medo... A trilha sonora de noites extasiantes, das quais ainda tenho a ansiedade, a espera, o apuro, outro medo. O suspiro, o calor, tanto espaço e o sono não vem. O sonho, o apêlo, mais um medo. O medo que nos torna incapazes e frios, estáticos diante da vida. A mágoa que vai e vem como o vento. A mágoa que não cessa, dói e queima o tempo todo. Momentos... No nosso ritmo eu me encontro e me refaço, por segundos chega a machucar mas depois, a sensação dessa história sem fim. Te prendo, te impeço, te amo. Essa chama que não se apaga, a crença, a superstição. A música que toca a culpa. Um instrumento de tortura, a caneta quase não tocando o papel; as palavras velam teu sono ou o teu cansaço... Meu quarto, minha ansiedade, seu tédio, nosso passado. Foge, corre pra longe e me refaz, seu pecado. Vem, sente esse gosto e eu te mostro do que sou capaz.